DIA INTERNACIONAL DO COMBATE ÀS DROGAS-Blogagem Colectiva ( II )
neo - j.r.g a minha participação ( II )
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CD - Lado B blogagem colectiva
A TRAGÉDIA DA MODERNIDADE-A DROGA
Era de noite e vieste, silenciosa como um felino, de manso caminhar por entre escombros, ruínas, da velha cidade adormecida. Tu e eu, num recanto da rua mal iluminada.
Os teus olhos ainda grandes, mal me olham, assustados. A pele do rosto descuidada e manchada pelo cisco das poeiras adejando por sobre o teu corpo, em volta da alma. Magra, diria escanzelada, enferma de carinhos e de ambição.
O sistema traiu-te e tu trais o sistema. Pagar na mesma moeda. Dente por dente. Sem olhar atrás nem para a frente nebulosa do caminho. Para ti, chegaste ao termo da etapa que para outros ainda é princípio.
Amparas-te no meu braço enquanto caminhamos lado a lado como dois amantes estranhos que tivessem combinado encontrar-se a esta hora, no momento estremo em que deambulavas na ânsia de encontrar algo, alguém que te bastasse o consumo da tragédia que já és, um pouco de pó, a volúpia da seringa penetrando-te as veias enormes onde ainda subsistem e o teu corpo treme ante a iminência de o conseguires.
Congregas o absoluto da tragédia. É isso que eu penso nesta loucura de ter correspondido ao teu apelo, aos teus olhos que me fitaram de uma forma absolutamente irrecusável.
Deixo-te sentada no carro e volto à porta do bar. Não ao Bar. Apenas a porta, onde um tipo de assobio saltitante, a barba indigente, puxa fumaças agressivas de uma espécie de cigarro.
Compro três tomas do produto que me indicaste e regresso ao carro em passos decididos. Tenho pressa.
Estás inclinada para a frente e uma humidade indecisa a bailar-te, escorrendo dos lábios entreabertos. Cai sobre o banco. Tremes alucinações. Balbucias palavras inteligíveis.
Arranco com o carro, tenho pressa, enquanto preparas o produto e o injectas numa das veias disponíveis, sob o meu olhar de soslaio. Imagens correm desabridas. Bem sei que estou só, que posso decidir de mim, de todos os meus actos, mas imbuído de uma força transcendente que me conduz, uma força ancestral, talvez das origens do homem, talvez não tenhamos sido sempre predadores de nós mesmos.
Chegamos, a casa não tem adornos nem vistas. É soturna, com livros e papeis espalhados sem critério. Ainda se o tivesse, se escolhesse o sítio onde o livro tal num determinado lugar do chão, ou o papel em relevo, atirado num momento de raiva ou de simples abstracção, ou a sensação de ter poder.
Olho para ti, o teu corpo ainda de criança, mal cresceste, rodeado de feridas provocadas em improvisos da tragédia.
Agarro-me a esta palavra: TRAGÉDIA, ao seu significado linguístico quando incluída num contexto, a esmiuçá-la quanto à significação da palavra em si e o que representa para ti e para mim, necessariamente emoções contrárias e não porque sejas mulher e eu homem, mas por força de outras eminências do ser e do não ser neste momento.
Olhas para mim enquanto despes, peça a peça, com falsa volúpia nos meneios do corpo, tentando induzir-me em eróticos fluidos inexistentes. Os olhos mortiços, apagados, sem brilho, sem luz, mas olhos e com um certo tipo de visão, evasiva, turva, de onde vislumbro uma ténue claridade de vida
Atiras-me a cueca mal cheirosa. Mijo e esperma de momentos antigos. Há quanto tempo a tua sujidade?
No quarto de banho a água morna sobre o teu corpo. Deixas que as minhas mãos o percorram em movimentos lentos com a esponja embebida em gel e a espuma abundante a cobrir a pele, as chagas ainda não completamente abertas. Os meus dedos penetram o canal anal em movimentos suaves retirando a merda acumulada. Há quantos dias, meses, anos. Desde quando. Dilatado o teu cu por enrabadelas consentidas em sôfregas investidas de gente tão sem ser como tu. O teu sexo original. Que te fizeram? Queimada com cigarro? elástica pelo uso sem nexo e a violência da irracionalidade.
Os teus pés tão delicados, gretados e as pernas que foram belas e agora encanecidas de veias duras, chagadas. As mamas estão como dois balões que se foram esvaziando. Espremidas, a carne, as glândulas, a seiva.
Seco o teu corpo com a toalha grande de todos os banhos e estendo-te a camisa de dormir da última mulher que amei. Escovo o teu cabelo. Abraço-te para te sentir. Para que me sintas. O teu corpo está frio e é um misto de rijo e mole.
-Estou limpa, vá. podes-me foder . Soltas gargalhadas, as mãos em desequilíbrio volteando sem nexo.
Olho para ti de novo. estás limpa por fora. Quase linda. Se tu quisesses! Se tu quiseres!
Preparo uma refeição para nós dois. Bifes grelhados e batatas fritas. _Faço sumo de laranja ou queres leite, pergunto.
Sentados em frente, os meus olhos nos teus olhos até que me fixas e te deixas fixar. _Prefiro o sumo.
Falas-me do desacerto da família. As carências de amor e de ódio. Apenas indiferença que dói, manipula a pessoa e a degrada. As noitadas sem registo, o desinteresse de tudo. A venda dos sentidos por momentos alucinantes de loucura e as ressacas são uma outra espécie de prazeres ocultos que nos inibem de nós e nos transportam para o outro lado do ser, o não ser. Onde já ninguém se importa de nós, até que um dia, Bah. Apaga-se.
Perdeste os modos de comer. Tens fome e fastio. Sem pressa e enquanto experimento sondar o que resta do teu eu, da essência que resta, que a droga não extinguiu.
-Gostava que ficasses aqui.
-O quê? Viver contigo?
-Não. Ficares aqui, simplesmente e deixares que te reaprenda e que tu própria reaprendas a pessoa que há em ti. Que tu és.
Choras. As lágrimas escorrem desalinhadas pelo teu rosto que vem ganhando alguma cor, após a comida quente.
Abraço-te e levo-te para a cama. Vejo que ficas na expectativa do que vou fazer a seguir e ensaias as posições aprendidas na tragédia.
-Fazemos um tratado.
-O que é isso?
-Um acordo de princípios. Vou colocar as duas doses que restam ali, ante ti. Para que os teus olhos as vejam quando acordares. Em cima da mesa das fotos de família. E tu vais resistir-lhes. Que dizes?
Viras-me o cu. E momentos depois, emocionada, a voz embargada numa aura de esperança, envolta em amor, como por magia, sem palavras, o sentido diáfano do conceito de amor, amar o quê? A quem?
-Porque esperas? Acaba com isto de vez. Faço tudo o que quiseres, Na cona, no cu, na boca. E deixa-me seguir o caminho. Podes ficar com a merda da droga. está pago.
Ela disse as palavras sem me olhar. a cabeça enterrada na almofada, a aspirar os aromas lavados há tanto esquecidos.
Levanto-a docemente da cama. Ele, o corpo dela a exalar os cheiros que cativam encantos. Resquícios entranhados na pele.
-Esquece tudo. Apaga. Agora és uma outra pessoa, sem passado, ou de passado ausente, e de presente suspenso. Não há igualmente futuro, apenas este presente suspenso. Chamo por ti, longe e quero que assines um compromisso, que te assumas em responsabilidade, que te chames de onde estás e voltes.
Um silêncio exasperante cortado por um ataque de tosse súbito. Ia cuspir no chão. Olhou-me com doçura, a mão estendida por um lenço.
-Estou aqui para te amar num pleno de intenções e conceitos da palavra. Não quero ter nada contigo do que dizes. Não quero foder. Quero-te num todo onde tu também és querer. O que eu quero agora é amar-te por todos os que não te amaram. Amar-te sobretudo a alma de cujo destino o corpo é alheio.
As palavras a ecoarem no vácuo do cérebro. Sentia-se bem, a dose acalmara os tremores, as ânsias, a refeição era a primeira completa e bem confeccionada desde que se lembrava, ou mais precisamente, como se fosse a primeira desde sempre. Sentia aquele homem diferente, tratando-a como uma princesa e propunha-lhe um pacto, um compasso de espera entre a razão e a irracionalidade. Sabia que não seria capaz. Logo que doesse rasgaria o pacto. Que se fodesse, mas arriscou.
-Ufa! Queimas-me. Onde é que eu assino.
A RESSACA
Sou um quadro superior, considerado importante. Pode dizer-se, um alto quadro de empresa farmacêutica, com direito a assessores e outras mordomias instituídas.
Telefono a antecipar um período de férias por quinze dias
O dia amanhecera fresco, com o sol de uma cor amarelada a despontar por sobre a falésia, enquanto em frente o mar de infinito, a cor verde adensada, espelhada numa larga extensão até que a linha de horizonte, como um traço fino de lápis afiado, se esbatia abruptamente no alcance da visão.
Dormitei na cadeira em frente da cama onde o corpo dela meio despido se espraiava em movimentos lentos, quase doces, por vezes convulsivos. E acordava, eu, em cada instante, sobressaltado, olhando de imediato o volume pequeno mas visível dos 2 panfletos de droga em cima do pequeno móvel das fotografias.
Será que vou ser capaz? Interrogo-me no silêncio do quarto amplo e meio na sombra dos cortinados corridos que escondiam a luz, prolongando a ideia de noite.
O corpo da mulher jovem e talvez bela um dia, ainda, que já fora. Parecia-me mais cheio. Que a carne ressequida voltava a ocupar, muito lentamente, os espaços escavados pela fome de anos. Um corpo de mulher na minha cama de desimpedido, livre de grilhetas legais.
Eu e ela como um só, o pensamento a vogar num sentido, enquanto o dela imerso em sonhos de afogada salva no último instante, parecia permanecer inacessível a qualquer apelo da razão
Pensava na essência do amor, O sentido presente da significação da palavra enquanto entidade que proporcionava uma oportunidade de redenção. A cama, onde vivi noites fatídicas de orgasmos múltiplos com mulheres carenciadas de afectos, perfumadas de aromas exóticos e que ao acordar pela manhã se mostravam na verdade puras de odores incompatíveis com a minha genética do cheiro.
Não havia perfumes adulterados naquele corpo de mulher e no entanto, o ar do quarto estava purificado pela maresia que entrava na fresta da janela e nos inundava num amplexo terno e sedutor.
Levantou a perna, ela, num gesto descuidado descobrindo a púbis luzidia, os pelos emaranhados mas soltos, leves, seco de pruridos ou corrimentos o sexo de crostas ainda agarradas no clítoris engelhado, como sem vida.
Levanto-me aturdido pela imagem dum ontem que procurava esquecer, partir de uma nova situação e com um sorriso ainda tímido nos lábios carnudos, fui preparar o pequeno-almoço.
Estava acordada, quando voltei de tabuleiro recheado, e o melhor dos sorrisos, a dizer a palavra bom dia.
Recomposta, esclarecida da nova situação, mastigando cada pedaço, rebuscando na memória escaldante, justificações quase pueris.
Os pais separados. A preocupação com a carreira de cada um. O irmão que era a glória da família. Namoricos desinteressantes de adolescente fugidia. Uma mudança de escola intempestiva. Amigas igualmente descontinuadas, como ela, um pai austero que surpreendera a ser repreendido por um senhor que fora lá a casa, que se recusara a esclarecer o que se passava, porque tinham de mudar de casa. A mãe indefesa, descrente, preocupada em ter elogios no emprego que era o tema de todas as conversas e da falta de tempo para ir à festa da escola, à reunião de pais, sequer a ouvir as suas dúvidas, as inquietações crescentes que a incomodavam.
-Seria melhor avisá-los que estás bem?
-Não. Puseram-me fora, acreditaram nas palavras de psicólogos imbecis. Que eu havia de me cansar da rua. Quando o que eu precisava era que me amassem sem reservas. Que atendessem ao eclodir de mim como pessoa. Que se confiassem em mim.
Parou. Os olhos febris e suores pelo rosto. Os olhos castanhos, chocolate, a olhar os panfletos em cima da mesa dos retratos. O corpo a contorce-se em espasmos incontroláveis.
-O que foi? Coloquei todo o mel possível na voz, quase ciciando as palavras.
Os olhos dela nos panfletos, a levantar-se, encolhida, agarrada a si própria, os braços magros em volta do corpo, a chegar à mesa, a poisar a mão no objecto de toda a fixação, o sonho, a libertação afrodisíaca. Um gesto brusco e o ar desvairado na procura, de quê, ainda.
Os meus olhos em ela, como que guiando o sentido da vontade.
-Não! O tratado! O Pacto! Ou lá o que foi que assinei. Quase um grito alucinado, a fugir do nada que não sendo é quase tudo.
Voltou, deixando os panfletos no local exacto onde estavam. Não já para a cama, mas deixando-se escorregar em tremuras, num canto do quarto, o mais escuro dos quatro, continuamente agarrada a olhar aquele homem que eu sou que não a quisera ter como tantos outros e a perguntar-se porquê. Que fazia ela ali, a sofrer dores insuportáveis. Se bastava uma simples dose do produto. E outra. E outra até à finitude de toda a matéria que ainda era.
Foram oito dias das férias. Fechados os dois, no quarto amplo de cortinas corridas. O comer encomendado pela Net. a langerie umas roupas bonitas para que se gostasse, os sapatos. Todos os dias um banho, as minhas mãos sobre o seu corpo a ganhar forma.
Três dias a implorar, ela, em delírios lancinantes. Por mais de uma vez segurara os panfletos entre as mãos trémulas e por entre soluços os largara.
Ao oitavo dia, eu tinha adormecido, por um momento. Acordei ao bater de palmas repetidas. O primeiro olhar foi para a mesa dos retratos. O coração em estrondos de batuques frenéticos. Desapareceram. Os panfletos de droga não estavam lá.
Olhei em volta e na expressão de espanto dos seus olhos, a imagem raiada de luz, em catadupas de luz, como um sol dos princípios do mundo, intenso, espalhando sonoridades na luz. como se um coro de meninos entoasse uma canção de amor.
O vestido vermelho cingido no corpo renovado de carne. Os olhos com uma expressão tão viva de felicidade. Sobretudo os olhos. Castanhos chocolate.
O vermelho sangue do vestido. O cabelo brilhante caído a raiar os ombros a descoberto pela cava do vestido.
Olhou a mesa. os panfletos que haviam desaparecido. E o riso dela, cristalino, aberto, confiante a levantar a moldura de criança em cima da mesa, deixando ver os pacotinhos. o papel branco sujo.
Levantou-se, os olhos toldados e abraçou aquele corpo bem cheiroso de aromas únicos, naturais, as mãos dele nas faces da menina bonita que ela se transformara, macias agora, os braços, os seios a voltarem a uma normalidade estranha ao corpo de antes.
Abraçou o corpo em êxtase.
-Minha menina! Minha menina! Como tu estás linda e vistosa. Bela na tua totalidade.
Como eu amo o que tu és agora. Um amor diferente de todas as espécies de amor. Um amor da ideia que consubstancias na forma do teu ser absoluto. Um amor da ideia de amor que é este sentir o outro a mexer dentro de nós, como sendo uma parte visceral chipada num lugar inacessível, porque é alma. Vou amar-te sem limites e mimar-te até ao fim de todos os fins
E a caminhada ainda é tão longa.
autor: neo - jrg