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PREFÁCIO DE LAUREANO CARREIRA PARA O LIVRO "A insurreição das PALAVRAS"
da autoria de joão raimundo gonçalves
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Há os autores que fazem poesia a olhar para o seu eu interior, à maneira de António Nobre ou de Florbela Espanca e de tantos outros, e depois há aqueles para os quais a palavra poética é expressão de sangue e raiva a brotar do interior em chamas. O seu, ou o de outros homens, que importância, pois que o poeta os assume como seu: “sinto o sangue [do povo] nos corredores confrontado com a desgraça”.
Meninos e moços, enquanto o breu da noite virava à aurora, íamos da praia da Costa da Caparica à Fonte da Telha atrás de uma linha com muitos anzóis atirada ao mar e arrastada pela corrente de norte para sul. No final havia alguns peixes que eram recompensa dos milhares de palavras trocadas durante a noite e dos sonhos acalentados pelo ardor da juventude: “não desistas nunca de sonhar” homem! Pois que é a vida se o homem não sonha?!
Palavras?
Não, não somente palavras, já que as palavras mais não são do que expressão do sonho, pois é com palavras que o homem sonha.
E é com as mesmas palavras que o homem exprime a dor de se sentir “Sísifo condenado / não de lacaio mas de jumento / a carregar o fardo enxuto de semente”.
A poesia de João Raimundo Gonçalves é uma poesia alimentada pela necessidade de esperança, quantas vezes carregada de desesperança, na qual a descrença no homem se transforma em apelo gritante à revolta libertadora. Como em Chove e na sua notável força expectante de que “pudera esta chuva à revelia / dos conceitos servis por anedóticos / arrastar na lama da corrente / impelida pela nossa portentosa rebeldia / agentes da desgraça patrióticos / salvadores de pátrias vazias de gente”.
A Insurreição das palavras é um apelo Às musas ninfas de espuma que “correm nas veias confusas / em passos de contra dança”. É a esperança e a recusa do olhar indiferente para o outro que estão em cada uma das palavras de João Raimundo Gonçalves. Mas também o amor da vida vivida para além das dificuldades do quotidiano. Filhos, e netos e palavras dolorosas ou carregadas de esperança são neste livro um apelo à “alforria das almas mortas”. Porque a vida brota do sangue, e assim deve continuar enquanto sangue houver. Como quando um homem corre, e corre, e corre pelo trilho do unimog numa pista da Guiné para não acontecer saltar com o unimog. Se sobreviveu ao quartel enterrado, às operações guerreiras, e às granadas, e aos tiros, à fome e à sede, se o homem conservou a Lucidez da [sua] loucura, por que arriscar a persistência da vida quando a salvação do corpo e a porta para o inferno da alma que recusa a indiferença do outro estão no final da picada? E o homem corre, corre, corre até à exaustão de si para ganhar para a sua eternidade o inferno de ser outro. Daí A Insurreição das palavras, que já eram palavras carregadas do iodo da praia da Costa da Caparica pelas noites de invernia antes de serem livro.
Laureano Carreira
Cabourg, Março 2013